Projeto de Lei
PROJETO DE LEI Nº 4523/2021
EMENTA:
DISPÕE SOBRE O ESTABELECIMENTO DE DIRETRIZES E PRINCÍPIOS PARA A IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS
PÚBLICAS DE ECONOMIA DO CUIDADO NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO E AUTORIZA O EXECUTIVO ESTADUAL A CRIAR O PLANO
ESTADUAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS DO CUIDADO. |
Autor(es): Deputado RENATA SOUZA
A ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
RESOLVE:
Art. 1º - Esta Lei estabelece princípios e diretrizes para a elaboração e implementação de políticas públicas com base no conceito de Economia do Cuidado.
Parágrafo Único: Entende-se Economia do Cuidado como sendo o trabalho, majoritariamente realizado por mulheres, de dedicação à sobrevivência, ao bem-estar e/ou à educação de pessoas, assim como à manutenção do meio (residência e local de trabalho, por exemplo) em que estão inseridas.
Art. 2º - A presente Lei tem como objetivo a implementação de políticas do cuidado, com o objetivo do Poder Público fornecer os instrumentos para a redução da distância entre a produção social e a reprodução social, reconhecendo as múltiplas formas de trabalho, garantindo a equidade de direitos e a socialização das tarefas do cuidado.
CAPÍTULO I - DOS PRINCÍPIOS E DIRETRIZES
Art. 3º - As políticas, os programas, planos, projetos e serviços que se relacionem com a Economia do Cuidado devem ser guiadas pelos seguintes princípios e diretrizes:
I - inclusão das perspectivas de gênero e raça no conceito de Economia do Cuidado promovendo a superação da divisão sexual e racial do trabalho e a distribuição das tarefas de cuidado entre todos os sujeitos da sociedade;
II – reconhecimento das múltiplas formas de trabalho, através da criação de um amplo sistema de políticas públicas para o cuidado coletivo que se apresenta por fora dos marcos do trabalho formal;
III – direcionamento prioritário das políticas públicas para trabalhadores do cuidado, remunerados ou não, exercido majoritariamente por mulheres, em tarefas como mães, avós, trabalhadoras domésticas, babás, cuidadoras, professoras e enfermeiras;
IV – a universalização dos direitos a atenção e ao cuidado para todas as pessoas, em condições de igualdade;
V – responsabilização do Poder Público pelo trabalho reprodutivo, realizando sua realocação da esfera familiar para a dimensão pública, através da implementação de políticas públicas do cuidado e da criação de infraestrutura social para o cuidado;
VI – articulação entre políticas de promoção de empregos e políticas públicas do cuidado, garantindo o acesso ao emprego ao mesmo tempo que provê serviços públicos para aqueles que dão e recebem cuidado;
VII – coordenação e articulação das políticas públicas do cuidado em conjunto com as políticas voltadas a redução da desigualdade social e a melhoria da qualidade de vida da população;
Art. 4º - São objetivos das políticas públicas do cuidado:
I – a “desfamiliarização” das tarefas do cuidado, realocando-as para o setor público;
II - a liberação das mulheres do trabalho reprodutivo para exercer o seu direito ao trabalho remunerado;
III – conscientização dos sujeitos da sociedade, em especial homens, sobre a economia do cuidado e a divisão sexual e racial do trabalho;
IV - criar uma cultura organizacional do setor público que possibilite que pessoas que cuidam possam gerir trabalho e vida pessoal de forma equilibrada;
V - garantir equiparação salarial, considerando disparidades de gênero e raça entre funcionários;
VI - o fim da jornada dupla e tripla de trabalho;
VII – estabelecimento de uma renda básica para famílias chefiadas por mulheres, com incentivo de inserção no mercado de trabalho;
VIII – criação de cargos e equipamentos públicos relacionados ao trabalho de cuidado dentro do funcionalismo público;
IX - articulação com os municípios com o objetivo de fortalecer políticas para a garantia de creches públicas pré-escolares e centros de recreação para acolhimento de crianças no contraturno escolar, bem como espaços de acolhimento infantil noturnos, para que as mães possam manter suas
atividades profissionais e acadêmicas neste período;
X - criar políticas públicas do cuidado que garantam visibilidade, proteção e valorização às pessoas que atuam em trabalhos de cuidado;
XI – criar, facilitar e expandir serviços de assistência remota a idosos, para ajudá-los na realização de tarefas cotidianas;
XII – expansão dos Institutos de Longa Permanência para Idosos pelo Poder Público Estadual, trabalhando com o fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários;
XIII – oferecimento de formação e treinamentos para cuidadores de crianças e idosos;
XIV – ampliação das políticas de licença-maternidade e licença-paternidade;
XV - políticas públicas que permitam redistribuir ou socializar os custos dos cuidados familiares.
CAPÍTULO II - DO PLANO ESTADUAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS DO CUIDADO
Art. 5º: Fica autorizado o Executivo Estadual a instituir o Plano Estadual de Políticas Públicas do Cuidado, objetivando a redução de desigualdades e a promoção da igualdade social, com um conjunto de ações e medidas para um modelo solidário de gestão das tarefas do cuidado, distribuídos entre o Poder Público, a sociedade civil, o setor privado e as famílias.
Art. 6º: Os princípios, diretrizes e objetivos dispostos nos arts. 3 e 4 desta lei serão observados e referenciados para a elaboração do Plano Estadual de Políticas Públicas do Cuidado.
Art. 7º: A elaboração do Plano Estadual de Políticas Públicas do Cuidado será realizada através de audiências públicas, com participação do Poder Executivo Estadual, Poder Legislativo Estadual, movimentos sociais e demais setores da sociedade civil.
Art. 8º: Caberá ao Executivo Estadual designar órgãos competentes para coordenar político-institucionalmente as Políticas Públicas do Cuidado, conforme as diretrizes gerais e os objetivos fixados nesta lei.
Art. 9º: Para fins de execução das políticas públicas do cuidado, o Poder Executivo poderá firmar convênios com órgãos da Administração Direta ou Indireta, com outras esferas de governo, bem como celebrar parcerias com o setor privado e termos de fomento e colaboração, na forma da Lei.
CAPÍTULO III - DISPOSIÇÕES FINAIS
Art. 10 - O Poder Executivo regulamentará a presente lei no que for necessário à sua aplicação.
Art. 11 - Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação.
Plenário Barbosa Lima Sobrinho, em 3 de agosto de 2021.
RENATA SOUZA
DEPUTADA ESTADUAL
JUSTIFICATIVA
Em conformidade às históricas reivindicações dos movimentos de luta das mulheres pela garantia de direitos e cidadania, bem como o enfrentamento ao machismo e desigualdade de gênero, consideramos urgente que o Poder Público tome para si a responsabilidade pela Economia do
Cuidado.
Como definição de cuidados entende-se como a ação de ajudar pessoas dependentes (crianças, idosos, pessoas com deficiência) em seu desenvolvimento e bem-estar na sua vida cotidiana. Isto significa dizer que os cuidados implicam, respectivamente, um trabalho, um custo econômico e uma dimensão de vínculo afetivo e sentimental, por isto condicionam uma economia, que historicamente é invisível e feminizada.
Os cuidados guardam uma intersecção com o gênero na medida em que ainda há muito no que se avançar para promoção de igualdade entre mulheres e homens no que diz respeito a divisão sexual do trabalho. O debate feminista que vem ocorrendo desde os anos 1990 tem denunciado a precária condição de cidadania social das mulheres, ou seja, a igualdade entre os gêneros não se concretizou na realidade, na medida em que a sociedade segue construindo papéis sociais baseados no gênero, que atribuem o espaço público como domínio dos homens, e o espaço privado do lar atribuído as mulheres.
As discussões feministas seguiram, portanto, um caminho de ressignificação do conceito de trabalho, enxergando-o para além do âmbito das atividades produtivas, o que implica em considerar as atividades de reprodução social da vida como um trabalho, embora tenha sido historicamente naturalizado como invisível, posto que sem valor social, e de responsabilidade das mulheres. Os cuidados, desta forma, estão inseridos neste contexto de gênesis social e política que desvaloriza as atividades de reprodução da vida que está a cargo sobretudo das mulheres (Batthyány, 2015)1.
Por isto, faz sentido dizer que os cuidados são intimamente vinculados às desigualdades de gênero, que por definição são não pagos ou sub-remunerados, estão à margem da vida pública, é uma atividade feminina e que fica a cargo das famílias. Este caráter dos cuidados é resultado de escolhas políticas, construções culturais de valor e sistemas de gênero que cristalizam as desigualdades de entre homens e mulheres.
É importante olhar para o cuidado como direito, o que significa reconhecer os sujeitos que necessitam de cuidados e suas implícitas dimensões de obrigações e direitos: dos que recebem cuidados e seu direito a ter este acesso independentemente da lógica mercantil, nível de renda, presença ou não de redes de vínculos familiares ou comunitários; e das pessoas cuidadoras desde a perspectiva de garantia de seu direito de decidir se podem cuidar ou não, bem como que sua atividade de cuidar seja valorizada tanto social como economicamente (Batthyány, 2015).
Segundo dados do IBGE2, em 2019, as mulheres brasileiras dedicaram aos cuidados de pessoas ou afazeres domésticos quase o dobro do tempo que os homens: 21,4 horas contra 11 horas semanais. Cabe ressaltar que a desigualdade racial impera pari passu ao machismo, o que implica das mulheres negras estarem submetidas a 22 horas semanais de dedicação ao cuidado e afazeres domésticos, enquanto mulheres brancas registram 20,7 horas para o mesmo período.
Os números apresentados acima retratam a imposição às mulheres da criação e educação das crianças, do cuidado com familiares, idosos ou enfermos e do gerenciamento doméstico, sem que as tarefas exercidas e o tempo demandado por elas sejam financeiramente recompensados pelo conjunto da sociedade, incluindo a administração pública.
É por esse motivo e também pelo papel secundário imposto às mulheres no mercado de trabalho, que a Economia do Cuidado é uma pauta central dos movimentos feministas em todo o mundo. A lógica entre esses dois fatores é simples: quanto mais tempo e energia a mulher gasta trabalhando
em casa, menos horas e disposição ela tem para se dedicar a outras tarefas da vida, como sua carreira profissional e lazer.
A economia do cuidado é essencial para a humanidade. Todo mundo precisa de cuidado para existir. Se hoje somos adultos, é porque alguém desempenhou horas de trabalho de cuidado com alimentação, remédios, higiene, educação e diversas outras funções por horas. E a sociedade (empresas, sujeitos, administração pública) se aproveitam desse trabalho, que é por diversas vezes gratuito ou sub-remunerado.
O impacto na vida das mulheres é imenso: amplia as desigualdades de renda, precariza as condições de vida em todos os âmbitos e ainda acarreta uma série de doenças, como estresse, estafa e depressão. Tudo isso gera impacto no caminho profissional. Ocupada com tarefas "invisíveis" aos olhos da sociedade, ela fica privada de tempo e recursos para garantir sua autonomia financeira, o que deságua na reprodução do ciclo de exploração e opressão.
Portanto, o intuito deste projeto de lei é desconstruir o histórico papel exercido pelo Estado, que ao invés de fortalecer o modelo de garantia de direitos de um sistema de proteção social, e que ainda é bastante recente e pouco fortalecido, mantém um modelo privado e baseado nas relações de
familiaridade, proximidade e solidariedade. Tal modelo reafirma uma lógica de desigualdades e superexploração da vida das mulheres, diante de uma sociedade patriarcal, portanto é necessário desfamiliarizar a organização da economia do cuidado, que seguem reforçando os ideários de gênero que reforçam desigualdades.
O valor econômico do trabalho não remunerado no âmbito doméstico não se contabiliza no PIB, mesmo que este seja equivalente a aproximadamente 1/5 deste, e são as mulheres que executam pelo menos 70% deste trabalho. No Brasil, por exemplo, as mulheres gastam em média mais de 61 horas por semana de trabalhos não remunerados domésticos, que equivalem a 11º do PIB do país, mais do que qualquer indústria e mais do que o dobro do que todo o setor agropecuário produz. (Fonte IBGE PNAD 2019).
Mulheres e meninas ao redor do mundo dedicam 12,5 bilhões de horas, todos os dias, ao trabalho de cuidado não remunerado – uma contribuição de pelo menos US$ 10,8 trilhões por ano à economia global. Isso dá mais de três vezes o valor da indústria de tecnologia do mundo. Além disso, as mulheres e meninas são responsáveis por mais de três quartos do cuidado não remunerado realizado no mundo, e representam dois terços da força de trabalho envolvida em atividades de cuidado remuneradas.
Tais acúmulos permitem incorporar novas perspectivas para pensar os regimes de bem-estar, entendendo os cuidados como parte desta política: o que implica reconhecer o Estado como agente provedor de cuidados, bem como a comunidade para além da família nuclear. A caracterização dos regimes de bem-estar, em geral, os definem como estadistas ou mercantilistas, conforme a preponderância do estado ou do mercado. Também há mais categorias para definir os regimes de bem-estar, que podem ser familistas (em que o cuidado depende das mulheres da família); desfamilizadores (em que o Estado, o mercado e a comunidade participa de forma importante no cuidado); e por fim as políticas de corresponsabilidade família-Estado-mercado: são aquelas que resultam do reconhecimento das desigualdades de gênero e do esforço para tornar a distribuição do cuidado mais eqüitativa, tanto no âmbito familiar quanto entre os diferentes agentes prestadores. Na América Latina de maneira geral, quando se aborda o componente do cuidado – que ainda é pouco reconhecido como políticas públicas de bem-estar – a partir de uma tipologia de estratégias de organização social do cuidado, vemos que a estratégia familista é a tipologia mais predominante. Nestes modelos são as famílias as principais provedoras do cuidado e o objeto de direitos das políticas de cuidado.
Neste contexto, é importante pensarmos em um novo contrato de gênero, que esteja baseado em relações de igualdade e não em relações patriarcais que tem a ver com as tímidas mudanças na divisão sexual do trabalho que não acompanharam as transformações estruturais que ocorreram com o ingresso das mulheres no mercado de trabalho, do maior acesso às mulheres à educação e a queda da taxa de fecundidade.
Dessa forma, acreditamos que elencar diretrizes e princípios sobre a economia do cuidado é fundamental para enfrentar a estrutura machista, misógina, patriarcal e racista da sociedade que vivemos, avançando para um mundo sem opressões.
1BATTHYÁNY Karina. Las políticas y el cuidado en América Latina: Una mirada a las experiencias regionales. Série
Assuntos de Gênero, CEPAL, Chile, 2015.
2 PNAD Contínua - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, IBGE, 2019.
Legislação Citada
Atalho para outros documentos
Informações Básicas
Código | 20210304523 | Autor | RENATA SOUZA |
Protocolo | 33355 | Mensagem | |
Regime de Tramitação | Ordinária | | |